“Vem de mais longe o mal”, diz Fedra, na tragédia homónima (1677) de Racine, ao tentar explicar e, ao mesmo tempo, ocultar, com perturbação e vergonha, a desmesura e ilicitude da sua paixão por Hipólito, o seu enteado. Em O filho (2018), de Florian Zeller, o mal que atormenta o jovem Nicolau, filho de Ana e de Pedro e enteado de Sofia, também “vem de mais longe”, como afirma o autor numa entrevista sobre esta sua peça, à qual quis imprimir a dimensão de uma tragédia. O que mais o interessou ao escrevê-la foi perscrutar esse mal, de contornos difusos, insondável, tanto para o jovem como para a sua família mais próxima, não propriamente para o perceber, mas para se confrontar com ele, para ousar olhar para uma perturbação “sem ter acesso à origem, à causa” e aprender a aceitar que, por mais explicações que se procure e esforços que se empreenda, há mistérios, como esse mal que “vem de mais longe”, que não se consegue desvendar. 

Na concretização do confronto com a estranheza desse mal no âmbito da família, como acontece em O filho, aceitar o seu mistério significa aceitar que um filho, no seu processo de crescimento, se autonomize ao ponto de se tornar incompreensível, inalcançável, para os seus pais e imaginar que estes possam ter de enfrentar situações extremas nas quais o amor não basta para o salvar.

Numa entrevista a propósito de O filho, Florian Zeller reflecte sobre a função do teatro: “O que eu acho misterioso, no caso do teatro, é que se trata de uma forma artística que existe desde a Antiguidade e que continua, em cada época, a interpelar os seus contemporâneos. Isso significa que as pessoas vêm a estas salas obscuras em busca de qualquer coisa que consideram necessária. O que poderá ser? Digo muitas vezes a mim próprio que o teatro é para nós uma espécie de espelho. Um espelho no qual podemos ver a vida das pessoas. Procuramos esse reflexo, por vezes deformante, para nos observarmos, nos reconhecermos, nos compreendermos.” Neste caso, ficou particularmente surpreendido e comovido com a reacção dos muitos espectadores que, no fim do espectáculo, esperavam os actores à saída do teatro não para os felicitar, mas para poderem prolongar a experiência afectiva a conversar com eles e a partilhar as suas próprias histórias de vida.

O que continuam os espectadores a procurar nas salas obscuras dos teatros? Catarse? Emoções fortes e libertadoras? Um espelho para se observarem e compreenderam melhor? Pathos e logos? Um momento de suspensão que os distraia das solicitações do quotidiano? Atenção concentrada e reflexão? Estética e ética? Um sentido de comunidade? Certamente tudo o que faz com que o teatro continue a existir.

No âmbito da parceria entre a TVI e a peça de teatro “O Filho”, em cena no Teatro Aberto, Vera San Payo de Lemos assina este editorial que remete para a função do teatro e para a temática central do espetáculo.