São quase todos homens, vestidos de negro e com archotes. A noite fica vermelha nas ruas por onde passaram. Um grupo neonazi desce as ruas da baixa de Lisboa para se manifestar contra a alegada “islamização da Europa”. Este movimento agita a teoria da grande substituição, ou seja, os europeus de tradição cultural maioritariamente cristã serão substituídos por muçulmanos. Esta ideia, veiculada por grupos de extrema-direita, encontra similitudes no discurso político de alguns países da União Europeia, sobretudo das democracias iliberais como a Hungria, mas não só. O Grupo de Visegrado – Hungria, Polónia, Eslováquia e República Checa – conseguiu influenciar a perspetiva que os europeus têm sobre os migrantes e refugiados que procuram a Europa como lugar seguro para viver. Enquadrando este fenómeno migratório como uma ameaça existencial, desenvolveram um discurso em torno do duelo “eles”, os muçulmanos, versus o “nós”, europeus. Esta perspetiva securitária influenciou a tomada de decisão, sobretudo desde 2017, quando o Conselho Europeu, liderado à época por Donald Tusk, hoje primeiro-ministro da Polónia, decidiu que estava na hora de fechar a rota do Mediterrâneo Central – a mais utilizada e também a mais mortífera.

Este tema provocou, desde 2015, quando se registou um pico de travessias irregulares, um aceso debate entre aqueles que defendem uma posição Realista, segundo uma das teorias das Relações Internacionais, em que os Estados têm o direito à decisão soberana de definir quem entra e quem expulsam dos seus territórios, e outra mais Liberal, cujo pensamento assenta em princípios de livre circulação de pessoas e a possibilidade de escolherem viver onde acreditam que terão melhores condições para se concretizarem. Na tensão entre estas duas correntes, temos assistido a um debate pouco clarificador sobre as políticas de imigração, incluindo em Portugal, para o qual contribuem a desinformação alimentada por manifestações de simbologia nazi, recriando um medo em relação àquilo que é estrangeiro, bem como por partidos de uma “nova direita”, liderados por imigrantes apologistas de uma “imigração seletiva”, como se houvesse seres humanos de primeira e de segunda classe.

A própria União Europeia adota este discurso quando o Alto Representante para os Negócios Estrangeiros, Josep Borrel, se refere à Europa como “um jardim” e ao resto do mundo como “uma selva”. Tentei encontrar a origem desta distinção e precisei de recuar até 1880, quando o advogado de direito público James Lorimer distinguiu a humanidade civilizada (a Europa), da barbárie (Estados Asiáticos como o Japão ou a Turquia) e da selvajaria (todos os outros). O que impressiona é como a passagem de quase dois séculos não esbateu esta concepção do mundo euro-centrada e, diria, imperialista e colonial: o “outro” é sempre inferior ao “nós”.

É inevitável que a população europeia desenvolva uma opinião negativa sobre os migrantes e refugiados quando o tema é apresentado com uma dicotomia que, por um lado, inferioriza o que é estrangeiro e, por outro, cria a ideia de uma invasão. Este cocktail explosivo abriu caminho à adoção de medidas excecionais, praticamente todas elas securitárias. Foram assinados acordos com países terceiros, como a Líbia, transferidos milhões de euros dos contribuintes europeus e treinadas as guardas costeiras para fazer com que os barcos com migrantes não consigam sair das águas territoriais líbias e fazerem-se à Europa. Independentemente da compaixão (ou da falta dela) para com esta tragédia humanitária, urge aferir o resultado. Terá funcionado acordo de gestão integrada de fronteiras com as autoridades líbias? A resposta é não.

A Líbia é um país intervencionado pela NATO e com dois governos a reclamar o controlo de duas regiões diferentes do país. Numa fase inicial depois do acordo, os números de travessias irregulares diminuíram, mas as migrações internacionais são um fenómeno que é diretamente impactado pela dinâmica dos conflitos globais. A guerra civil na Síria, por exemplo, assumiu nos anos pós-acordo uma fase diferente. Assim, existem variáveis que devem ser tidas em conta quando olhamos para este decréscimo em 2018 e 2019. Sobretudo porque uma análise dos dados mais recentes da Frontex permite concluir que as travessias irregulares para a União Europeia estão outra vez no nível mais alto desde 2016. Assim, conclui-se que a colocação de amarras a fluxos migratórios com acordos com países que não garantem o cumprimento dos Direitos Humanos do migrantes em trânsito não é o caminho nem político, nem migratório, nem de dignidade humana.

Espera-se que neste mês o Parlamento Europeu e o Conselho terminem as negociações do Novo Pacto para as Migrações e Asilo, de forma a colocá-lo em vigor, no máximo, em abril. É um esforço na reta final deste ciclo europeu que terminará em junho, com as eleições europeias, cujo mote é “promover a forma europeia de vida”. Mais uma vez, debato-me com este conceito que me parece legítimo do ponto de vista geral, afinal a ideia de identidade nacional é importante para a união de um povo, mas revela-se injusto do ponto de vista das migrações: acentua, pelo menos, a ideia perigosa do duelo entre o “nós” e o “eles”.

É aqui que surge a armadilha de Tucídides da Europa. Este conceito refere-se ao momento em que um poder em ascensão desafia o poder instalado, resultando num desequilibro na balança de poder. Tal como Esparta reagiu à ascensão de Atenas na Guerra do Peloponeso, também a União Europeia está a reagir ao crescimento da extrema-direita, adotando parte da sua retórica como estratégia para manter o status quo. Se isso se traduzirá nos resultados eleitorais, só a noite de 9 de junho dirá, mas o que parece evidente é que este tema nunca se resolverá enquanto vingar a perspetiva securitária sobre os migrantes e refugiados. Enquanto não existir uma política que resolva de forma digna a tragédia humanitária no Mediterrâneo, os migrantes continuarão a chegar e os homens de negro e com archotes continuarão a descer as ruas das cidades europeias. Alguns até planeiam secretamente a deportação em massa de migrantes, como aconteceu na Alemanha, à semelhança da ideologia do regime nazi. A reação às migrações não as resolveu, mas sim agravou o nível do debate político, resultado numa bola de neve. Desta forma, a Europa está presa numa armadilha onde se deixou cair. Como refiro no meu livro A Última Fronteira, “há muros que se erguem e são difíceis de explicar; outros, os ideológicos, são mesmo a última fronteira e a mais difícil de ultrapassar”.